segunda-feira, 22 agosto 2022 14:55

Cristina Casalinho: tendências recentes e futuras da inflação

Após várias décadas de contenção de preços, desde meados de 2021 observa-se uma aceleração da inflação. Tem de se recuar a junho de 1982 para encontrar níveis de inflação nos EUA superiores aos agora registados. Na Europa, não existem observações de valores tão elevado desde a criação do euro. Contudo, na área do euro, em países como França ou Portugal, encontram-se níveis de inflação idênticos aos atuais nos anos 2000, induzidos por aumentos de preços de energia.

Olhando para o caso português, constata-se que a inflação atingiu 3,3% em janeiro, que compara com níveis de 4% em 2011, 2,86% em 2008, ou 3,08% em 2006. Face à inflação da área euro, a evolução dos preços nacionais revela um comportamento moderado, permanecendo inferior à média europeia (3,3% em Portugal vs 5,10% na UE em janeiro último), posição relativa existente desde 2012, com interrupção temporária em 2015 e 2016.

A força do movimento de subida da inflação surpreendeu pela pujança e duração, despertando preocupações sobre a sua natureza e possibilidade de se transformar num processo endémico. O debate ganha visibilidade nos comentários das autoridades monetárias dedicados à inflação e implicações sobre taxas de juro.

Como se explica a recente aceleração da inflação? Um dos principais responsáveis pelo aumento do nível geral de preços é a subida dos preços dos bens energéticos. Na Europa, depois de um ano com pouco vento e progressiva transição de fontes energéticas fósseis para fontes não emissoras de gases de efeito de estufa, o peso do gás natural como alternativa ao carvão e petróleo reforçou-se. O preço daquela fonte energética atingiu níveis recorde na segunda metade de 2021. Apesar de, aparentemente, se ter atingido um máximo e entrado em queda lenta, os níveis historicamente elevados irão contaminar a leitura da evolução dos preços nos indicadores a doze meses. Complementarmente, estrangulamentos nas cadeias de abastecimento, devido a roturas de fornecimento associadas a descontinuidade de produção devido à Covid-19, pressionaram preços num momento em que os padrões de consumo se alteraram. Constrangidos na sua mobilidade devido à pandemia, os consumidores deslocaram as suas preferências de serviços para aquisição de bens, primeiro, não-duradouros e, ultimamente, duradouros. Mesmo que os preços da energia, das matérias-primas e de outros componentes industriais regressem a patamares normais, a elevação tende a prolongar-se por cerca de um ano, até ao momento em que os registos mais elevados são substituídos por outros mais baixos. Este movimento mecânico explica a convicção do Banco Central Europeu de abrandamento da inflação na segunda metade de 2022.

A inflação é um fenómeno monetário e, nos últimos anos, a política monetária tem sido acomodatícia, sem, contudo, despertar subida sustentada e generalizada dos preços no produtor ou no consumidor. A abundante liquidez disponibilizada pelos bancos centrais tem sido canalizada para os mercados financeiros e imobiliário, em que se registam valorizações máximas em várias classes de ativos, enquanto a inflação de bens reais (exceto habitação) se tinha mantido contida. Estarão os mercados de bens e serviços a ser contagiados por este processo num momento em que os bancos centrais se apressam na redução de estímulos monetários?

A inflação de 7% nos EUA e de 5% na Europa será um processo transitório como as autoridades monetárias preconizam dependendo da emergência (ou não) de efeitos de segunda ordem: surgimento de uma espiral preços-salários. A verificação da validade da hipótese de transitoriedade da inflação impõe uma análise do mercado de trabalho. Ao atual acréscimo de preços subjaz uma incapacidade de a oferta mundial recuperar ao mesmo ritmo da procura, sendo que esta se recompôs rapidamente, reorientando-se de serviços para bens. Esta natureza da pressão de preços favorece uma visão temporária do fenómeno, segundo a qual os preços elevados condicionam a procura, alinhando-a com a oferta e promovendo o ajustamento. Todavia, pode-se assistir ao enraizamento do fenómeno inflacionista quando empresas e trabalhadores dispõem de poder de fixação de preços de modo a forçar subidas de preços e salários em espiral para manutenção de margens de lucro/poder de compra num processo de autoalimentação.

Os constrangimentos na cadeia global de fornecimento vão perdurar para além do inicialmente previsto, penalizando a normalização da oferta de bens. Neste momento, afigura-se difícil avaliar a capacidade de as empresas fazerem refletir sobre os preços finais o agravamento de custos, mantendo as margens, bem como o poder dos trabalhadores reclamarem aumentos salariais para reposição do poder de compra. No entanto, na Europa, as taxas de desemprego regressaram a patamares pré-Covid e a taxa de participação apresenta-se elevada, muito embora o crescimento salarial se mantenha controlado. Não obstante a pressão salarial existente em várias áreas especificas do mercado laboral, onde se verifica excesso de procura face à oferta de qualificações específicas, e a preocupação dos gestores com o fenómeno de “luta por talento”, o crescimento da massa salarial permanece moderado e alinhado com níveis pré-pandémicos. Ainda relativamente a acréscimos salariais, importa salientar que a espiral inflacionista se gerará somente no caso de aumentos salariais não serem sustentados por acréscimos de produtividade. Ora, durante a crise pandémica, devido à aceleração da transição digital e automação, a produtividade do trabalho cresceu significativamente, acomodando melhorias salariais. O governador do Banco de Inglaterra, expressando apreensão com a espiral preços-salários, defendeu contenção nas negociações salariais, alertando para o perigo de enraizamento da inflação e de reforço do ritmo de remoção de estímulos. Este risco é relevante; pois, um aumento material das taxas de juro, em famílias endividadas, a braços com subidas de preços, pode ameaçar a recuperação económica numa fase precoce.

Como referido anteriormente, a inflação portuguesa, na última década, caracteriza-se por ser inferior à média europeia, com o andamento determinado pelos preços de bens energéticos, bens alimentares não processados e serviços. Excluindo a elevada reatividade aos preços internacionais da energia e, portanto, concentrando-se na inflação subjacente, esta tem apresentado um padrão relativamente estável, influenciado pela evolução dos preços dos serviços e, por conseguinte, da componente salários. O aumento do grau de abertura da economia nacional favorece a sincronia da evolução dos preços domésticos com os da área do euro, sendo que a dependência energética externa e o endividamento das famílias, num contexto de subida de taxas de juro, poderão condicionar negativamente o rendimento disponível, penalizando a expansão da procura e, portanto, dos preços. Assim, (embora não exatamente pelas melhores razões) persistem os argumentos favoráveis à contenção da inflação portuguesa face à europeia.

Genericamente, os fatores determinantes da recente aceleração da inflação apontam para que esta possa manter-se acima do patamar médio da última década, por via da transição energética e alterações no mercado de trabalho, embora controlada devido a aumento do investimento empresarial e acréscimo de produtividade do trabalho. Realce para a inflação centrada em 2% é o objetivo de estabilidade de preços prosseguido pelo Banco Central Europeu e esta meta não está afastada do horizonte. Valores muito próximos de zero, como observado nos últimos anos, devem ser assumidos como a exceção, enquanto a saudável norma aponta para patamares superiores, como os mencionados 2%.

Fonte: Store Magazine - edição de Janeiro/Março 2022

Newsletter

captcha 

Estante

Assinar Edição ImpressaAssinar Newsletter Diária